Muito trabalho e pouco sono, a mistura explosiva
Casos de privação do sono chegam cada vez mais aos consultórios. O tema é desvalorizado, dizem os especialistas. Há quem proponha que o trabalho e as aulas tenham início mais tarde. Um livro que acaba de ser publicado em Portugal apela à “revolução” e sugere salas de sesta nos empregos.
O “momento eureka” que se seguiu depois serviu-lhe para escrever dois livros. Fundou uma plataforma sobre bem-estar, a Thrive Global, e hoje luta por um mundo que passe mais tempo a dormir. É um combate que existe, porque, diz, a nossa relação com o sono “está em crise”.
Com a apologia de uma revolução, como o título indica, o livro aborda como as contradições do nosso tempo se relacionam com a falta de sono: hoje temos mais informação do que nunca sobre o sono, devido às evoluções tecnológicas, mas são os aparelhos que prolongam o nosso dia de trabalho e não nos deixam desligar... nem dormir; a indústria do bem-estar prolifera, mas passamos noites em que dormimos quase nada.
Cerca de 20% dos portugueses têm dificuldade em adormecer, diz um estudo da Associação Portuguesa do Sono. Mais de 60% têm problemas de sono, mostra um inquérito de 2016 da Deco
“Evangelista do sono”, como se chama a si própria, Arianna Huffington, 66 anos, tira o pulso às consequências da falta de descanso do cérebro e explica, citando várias pesquisas, por que razão é um erro vivermos “na ilusão de que conseguimos fazer o nosso trabalho tão bem com quatro ou cinco horas de sono como com sete ou oito”. A privação de sono torna-nos mais vulneráveis a doenças e, acrescenta, a incidência de morte por qualquer causa sobe em 15%, quando dormimos cinco ou menos horas por noite.
Por isso, quando os funcionários de uma empresa estão
cansados, “seria melhor para o negócio” eles chegarem mais tarde para ficarem a
dormir, em vez de faltarem por razões de saúde uns dias depois. Ou então,
prossegue ainda, devia haver um local no emprego onde pudessem fazer sestas —
um “remédio de 30 minutos” que pode inverter “o impacto hormonal de uma noite
mal dormida”. Os escritórios do The Huffington Post têm salas de sesta.
Arianna Huffington defende também que as empresas deveriam
introduzir mais flexibilidade e controlo dos horários de trabalho, de modo a
que os seus funcionários tivessem mais tempo para dormir. E que deviam estar
mais disponíveis para que quem quer trabalhar em casa o possa fazer, ganhando
tempo nas deslocações.
As 40 horas semanais de trabalho implicam que, por dia, se trabalhe oito horas, se durma oito horas e se passe as outras oito horas em lazer. “Quando as pessoas mudam o paradigma do ‘oito vezes três’ estão, forçosamente, a reduzir o tempo de sono e de descanso”
A regra “três vezes 8h”
A questão é que quando se olha para os exemplos vindos dos
lugares de topo não falta quem se vanglorie do pouco que dorme e do muito que
trabalha, comenta a autora sobre a realidade americana. Em Portugal são famosas
as quatro horas de sono do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Os
especialistas usam um termo para quem dorme pouco, como o Presidente: “short
sleeper”.
Cerca de 20% dos portugueses têm dificuldade em adormecer,
diz um estudo da Associação Portuguesa do Sono (APS). Mais de 60% têm problemas
de sono, mostra um inquérito de 2016 da Deco, feito a mais de 1100 pessoas — e
uma em cada quatro tinha tomado fármacos para a ajudar a adormecer. Joaquim
Moita, pneumologista e presidente da APS, diz que os portugueses dormem mal por
uma questão cultural. “O sono tende a ser desvalorizado socialmente. Há pessoas
que voluntariamente dormem pouco, acham um desperdício de tempo dormir.”
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MARIANA SOARES |
Misturamos dois hábitos terríveis: começar o trabalho — e as aulas, nas escolas — muito cedo com a prática de atrasar o fim do dia laboral, o jantar e a ida para a cama. E até o início das actividades recreativas, como beber um copo, são arrastadas para de madrugada. Tudo isto “resulta num número de horas de sono reduzido”. O que acontece tanto com adultos, como com crianças — muitas começam a acordar às seis da manhã e depois nem sesta fazem na escola. Esta devia ser obrigatória até aos 6 anos, defende o especialista.
Sempre dormi bem e tive a capacidade de desligar. Agora não. E tenho mais dores de cabeça, mais dores de estômago, deixei de comer algumas coisas, porque não me caíam bem
Maria Almeida
Teresa Paiva, precursora na área e fundadora de um centro do
sono onde trabalham entre 20 a 30 pessoas, anda a alertar há mais de dez anos
para a má relação dos portugueses com o sono. A neurologista, que já tratou de
mais de cinco mil casos no consultório, e de outros 10 mil em hospitais, fala
da “mania” portuguesa de “que trabalhar muito é bom e produtivo”. Lembra as
estatísticas da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico, que
atestam que Portugal é um dos países com mais horas de trabalho, sem que isso
se traduza em produtividade (aparece em 9.º lugar, em 1.º está o México e em
último a Alemanha). “Nos países do Norte as pessoas saem do trabalho às 17h,
aqui é pecado sair antes das 20h.”
No consultório, quando lhe dizem “não tenho horário”, já
sabe o que isso significa: trabalho a mais. As 40 horas semanais de trabalho
implicam que, por dia, se trabalhe oito horas, se durma oito horas e se passe
as outras oito horas em lazer. “Quando as pessoas mudam o paradigma do ‘oito
vezes três’ estão, forçosamente, a reduzir o tempo de sono e de descanso”,
afirma. “Os portugueses tendem a trabalhar de forma desorganizada, com
interrupções. A ideia de fazer multitasking é disparatada: a energia que o
cérebro dispende é muito maior do que se fizer uma tarefa depois da outra.”
Um estudo que Teresa Paiva fez com outra especialista em
sono, Marta Gonçalves, indica que, em média, os portugueses dormem sete horas
por dia, mas que esta média varia entre duas e 11 horas, ou seja, há muita
gente a dormir menos de cinco. Isto significa um aumento de riscos: do
colesterol, de diabetes, de doenças auto-imunes, de acidente, de cancro, de depressão,
de insónia (e de um dia de baixa em breve).
Bancários, funcionários de multinacionais e de grandes
empresas de advogados, jornalistas, profissionais dos media são das profissões
em que há mais privação de sono, diz.
Dormir menos de cinco horas é claramente insuficiente,
defende também Joaquim Moita. Aliás, todos os especialistas contactados dizem
que menos do que sete em adultos não é recomendável. Os efeitos da sonolência
podem manifestar-se de múltiplas formas, acrescenta: défice de memória,
dificuldade de raciocínio, ataques de sono (que acontece muito nos condutores).
Autora de um estudo sobre os efeitos da privação do sono nos
médicos, Inês Sanches defende que a privação crónica do sono deveria ser
encarada como uma doença — justamente por causa dos efeitos, como a ansiedade e
depressão. Com os seus doentes fala normalmente da necessidade de dormir, tenta
convencê-los a cumprir as horas de sono mínimas. “Ao não dormir parece que vou
estar a poupar tempo para trabalhar, mas no fundo vou ser menos rentável.”
Joaquim Moita, presidente da Associação Portuguesa do Sono, sugere que as aulas tenham início às 9h30 no ensino básico e às 9h nas universidades
Quanto ao número de horas de repouso que recomenda, varia.
Há quem precise de oito, há quem precise de um pouco mais ou menos. São as
pessoas que têm de ter a noção do seu perfil. “Quem dorme mais ao fim-de-semana
é porque anda a dormir menos do que o necessário durante a semana.” É um bom
teste.
Especialista em cronobiologia, ciência que estuda os ritmos
circadiários, Cátia Reis diz que os efeitos de dormir menos de cinco horas por
noite são vários, porque “há hormonas que só são produzidas durante a noite: a
testosterona, a leptina, a hormona da saciedade (e por isso é que existem
tantos casos de obesidade)”, por exemplo. É possível ter uma vida normal
dormindo quatro horas? “Não”, garante. “Existem muito poucas pessoas” que ficam
bem dormindo quatro horas. “No geral, menos do que cinco ou mais do que dez, é
patológico.”
Casos de quem dorme pouco são cada vez mais comuns nos
consultórios. “As pessoas acabam por ter imensas actividades e não desligam.
Algumas vão para o ginásio à noite o que é um problema: é suposto a temperatura
corporal descer à noite.”
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MARIANA SOARES |
Dormir para quê?
Por que é que precisamos, afinal, de dedicar uma parte tão
grande da nossa vida a dormir? Diogo Pimentel integra uma equipa de
investigadores da Universidade de Oxford, em Inglaterra, que fez um estudo
sobre o sono, e responde ao PÚBLICO: continua a ser “um mistério”. Já os
efeitos negativos da falta de sono estão “bem documentados”.
Explica: a dopamina consegue interromper o sono. Certas
drogas psicoestimulantes (cocaína ou anfetaminas) aumentam os níveis de
dopamina no cérebro, diminuindo a necessidade de dormir. “Parece-me que o
stress, as preocupações, instabilidades, o excesso de trabalho e os prazos
apertados que, muitas vezes, temos de cumprir podem fazer algo semelhante através
do aumento de hormonas ou activando sistemas (dopamina e não só) que tenham um
efeito supressor do sono.”
Cátia Reis trabalha com doentes com “atraso de fase”, os
chamados “mochos”, e que muitas vezes têm privação de sono crónica por causa
dos seus compromissos sociais. É o caso de António (nome fictício), que precisa
de dormir dez horas por dia. “As pessoas não levam a sério a questão do sono”,
queixa-se. Há 15 anos, sentiu problemas e pediu ajuda. Primeiro tentou o apoio
do Serviço Nacional de Saúde, mas quando percebeu que tinha de esperar três
anos para uma consulta foi ao privado. Decidiu também “respeitar” o seu corpo,
ir viver para fora de Lisboa e ter uma vida saudável. Professor universitário,
conseguiu passar a dar aulas apenas no período da tarde, depois de
“negociações” com a direcção.
Já Maria Almeida, 27 anos, trabalha na área de marketing da
Beta-i, uma organização que apoia start-ups. Normalmente, chega por volta das
9h e sai pelas 20h, altura em que quase começa um “outro dia de trabalho” com
os seus três part-time: o cão, o site Startupship e o podcast É Apenas Fumaça.
Dorme mais ou menos cinco horas por noite, porque se desdobra nestas “mil
coisas”. O ritmo intensificou-se nos últimos seis meses, ao fim-de-semana tenta
recuperar, “mas há sempre interrupções”. Como é que esta privação do sono a
afecta? “Sou das pessoas mais maldispostas de manhã”, conta. “Só me apetece
deitar o despertador pela janela.”
Tem noção das implicações do cansaço no seu dia-a-dia.
Entusiasma-se, quer fazer muita coisa ao mesmo tempo. Mas sente que está “a
chegar ao limite”: “Sempre dormi bem e tive a capacidade de desligar. Agora
não. E tenho mais dores de cabeça, mais dores de estômago, deixei de comer
algumas coisas, porque não me caíam bem.” Por isso, está a pensar em diminuir o
volume de trabalho no seu emprego oficial.
Como se altera esta cultura? Com medidas concretas,
respondem os especialistas. Em França instaurou-se recentemente uma norma de “direito
a desligar” — consagrou-se o direito do trabalhador não responder a emails ou
telefonemas depois do horário de expediente (o assunto está em discussão em
Portugal).
“Seria um bom começo”, diz Teresa Paiva. Mudar o início de
horários escolares e de horários de começo de trabalho seria outra boa ideia.
Joaquim Moita, presidente da Associação Portuguesa do Sono, sugere as 9h30 para
o ensino básico e as 9h para as universidades.
Teresa Paiva defende que deveria haver uma discussão pública
sobre as políticas do trabalho, do descanso e do sono. “Se não se fizer nada,
caminhamos para uma sociedade com mais risco de obesidade, depressão, doenças
auto-imunes, cancro.”
A questão é convencer uma sociedade inteira de que o sono é
tão importante quanto o resto. Vamos, pelo menos, dormir sobre o assunto?
Artigo retirado a 4 de Maio de 2017.
Fonte: https://www.publico.pt
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